O autoritarismo chavista antes de Maduro
Na atual discussão sobre o caráter autoritário do regime venezuelano sob Nicolás Maduro, surgiu a discussão sobre o quanto o atual presidente estaria rompendo com a política iniciada por seu antecessor e mentor, Hugo Chávez.
Minha avaliação é que não há ruptura, mas continuidade e aprofundamento.
Para deixar claro esse ponto, recupero aqui meia-dúzia de colunas sobre Chávez e o chavismo que escrevi para o Valor Econômico quando Chávez ainda estava vivo e no governo.
Como não consigo mais acessar esses textos pelo site do Valor, recuperei os manuscritos e os publico agora aqui, neste blog, da forma como foram originalmente escritos, apenas corrigindo pequenos erros de redação que notei agora, mas que me haviam escapado à época.
A protoditadura de Chávez - 1
Coluna publicada no Valor Econômico em 05/07/2007
As últimas declarações do presidente venezuelano, Hugo Chávez, sobre a eventual adesão de seu país ao Mercosul tornam mais evidente o caráter do regime que vem paulatinamente sendo construído na Venezuela, desde a primeira eleição. Aquele país tem experimentado uma lenta e gradual transição de um regime democrático para uma ditadura – embora não possamos ainda dizer que a eliminação das condições de funcionamento da democracia já tenha se dado. É importante analisar com atenção a forma como a mudança vem ocorrendo na Venezuela, pois é justamente o seu gradualismo e suas ambigüidades que tornam tão difícil detectar o rumo autoritário que a Venezuela vem seguindo.
As ambigüidades do regime democrático venezuelano, aliás, remontam ao período anterior à ascensão de Chávez. Após o “Pacto de Punto Fijo”, firmado em outubro de 1958, consolidou-se na Venezuela um sistema bipartidário no qual a Ação Democrática (AD) e o Partido Social-Cristão (COPEI) se revezaram no poder, por meio da assim chamada “concertación”, que muito pouco espaço deixava ao ingresso de qualquer terceira força na cena política do país. Nada demais até aí, já que diversas democracias das mais estáveis do mundo também vivenciam regimes bipartidários bastante impermeáveis; contudo, a reduzida competitividade do sistema político venezuelano e a força das corporações beneficiárias do dinheiro do petróleo engendraram um grau de corrupção que acabou por deslegitimar o regime – que assumiu as feições de uma democracia fortemente oligarquizada.
O ápice dessa desagregação da legitimidade se deu durante o segundo mandato de Carlos Andrés Pérez, entre 1989 e 1993, primeiro por meio da tentativa de golpe de Estado perpetrada por Chávez, depois, quando Pérez sofreu o impeachment em virtude de denúncias de corrupção. A tradução institucional da dissolução do bipartidarismo oligárquico ocorreu com a saída do ex-presidente Rafael Caldera do COPEI, fundando uma nova agremiação, a Convergência, pela qual se elegeu novamente para o Executivo nacional em 1993. Durante seu mandato, Caldera anistiou ao golpista Hugo Chávez, que deixou a prisão e iniciou uma feroz oposição contra o presidente que lhe indultou, finalmente ascendendo ao poder após as eleições de 1998.
Chávez inicia seu mandato legitimado eleitoralmente, que ninguém poderia lhe contestar. Escorado nessa legitimidade e em grande popularidade, convocou eleições para uma Assembléia Constituinte na qual conquistou a grande maioria das cadeiras, podendo assim desenhar a nova carta de acordo com suas preferências. Foi aí que se iniciou a “Revolução Bolivariana”. O primeiro ato propriamente revolucionário – ou seja, de ruptura com a ordem democrática instituída – foi a autoconcessão de poderes soberanos pela Assembléia Constituinte de maioria chavista. Com isto, os constituintes subordinaram a si todos os demais poderes de Estado, eleitos ou não – o Executivo (liderado pelo chefe da maioria na Constituinte), o Legislativo (que ainda contava com maioria antichavista) e o Judiciário (também pouco flexível às demandas de Chávez). Noutras palavras, ao arrogar-se supremacia sobre os demais poderes de Estado, a Assembléia Constituinte tornou-se detentora de um poder absoluto – já que sem limites constitucionais ela própria – de modo a fazer com que o país operasse durante alguns meses sob um “absolutismo eletivo”. Muitos tiveram dificuldade para enxergar aí um primeiro experimento autoritário pelo fato da Assembléia ter sido eleita.
Finda a Assembléia Constituinte e, com ela, o absolutismo eletivo, criaram-se as condições para que o país retornasse à normalidade democrática – o que seria plenamente possível, a despeito do novo mandato presidencial de Chávez e da maioria chavista no Legislativo nacional e nos governos provinciais. Todavia, o clima político não era dos melhores, com a formação dos Círculos Bolivarianos (espécie de milícias de sustentação do Presidente que operavam também como conselhos comunais) e a postura cada vez mais agressiva da mídia oposicionista – em programas de TV chegava-se a fazer comentários sobre a sexualidade de Chávez e acerca de uma possível atração dele por Fidel Castro. Isto, acrescido ao enfrentamento do presidente com a elite social e econômica do país, culminando com a greve da companhia petrolífera (PDVSA) e a demissão de muitos de seus dirigentes, levou alguns setores do empresariado a – de conluio com militares descontentes – perpetrar um golpe de Estado contra o presidente, em abril de 2002. O tiro saiu pela culatra, pois Chávez retornou ao poder triunfalmente e a oposição se deslegitimou, por ter-se identificado com os mesmos métodos daquele a quem se opunha.
O novo triunfo de Chávez sobre a oposição se deu com o plebiscito convocado para aferir se havia disposição popular para manter o presidente no cargo. Esse expediente, uma espécie de “super-recall”, foi criado pela constituinte chavista e parecia voltar-se contra seu mentor. Todavia, a obtenção de quase 60% de votos favoráveis à manutenção de Chávez no cargo em agosto de 2004 reforçou-o ainda mais diante de seus opositores, pavimentando o caminho para que fosse novamente reeleito em dezembro de 2006. Noutras palavras, o golpismo da oposição e sua derrota eleitoral em ao menos três ocasiões após a ascensão inicial de Chávez ao poder tornaram difícil a alegação de que o presidente não estava democraticamente legitimado para exercer seu cargo. Tal situação ofuscava quaisquer ações antidemocráticas que o presidente pudesse perpetrar para expandir seu poder.
Mesmo a proximidade de Chávez com o ditador Fidel Castro e com o regime cubano são insuficientes para afirmar-se que, apesar das evidências – sobretudo da retórica inflamada e polarizadora – a democracia deixara de vigorar na Venezuela. Mas um passo crucial foi dado com a decisão de não renovar a concessão da rede televisiva que mais fortemente se opunha a ele, a RCTV. A justificativa de que a emissora apoiara o golpe contra o presidente parece não condizer com o passado golpista do próprio – que, aliás, foi indultado. A justificativa de que tudo foi feito dentro da legalidade também não é satisfatória, já que há leis que são iníquas e tanto aqueles que as fazem como os que optam por valer-se de algumas de suas autorizações não podem ser escusados em nome do legalismo – um vício sempre condenado pela esquerda, que hoje o invoca. Continuo na próxima semana.
A protoditadura de Chávez - 2
Coluna publicada no Valor Econômico em 12/07/2007
Na coluna passada apontei que a democracia venezuelana caminha gradualmente para sua dissolução, transitando para um regime autoritário. Apontei elementos indicativos de que já antes da ascensão de Chávez a democracia venezuelana era deficiente - oligarquizada e a corrupta - de modo que a emergência do chavismo tem raízes mais profundas na história do país. Passo decisivo na inflexão autoritária foi a decisão presidencial de não renovar a concessão da RCTV, com vistas a calar uma das principais vozes da oposição - voz que, faça-se justiça, nem sempre primou pelo oposicionismo leal, ou seja, ele próprio fiel à democracia, haja vista seu apoio ao golpe de Estado que apeou temporariamente Chávez do poder.
Mas a deslealdade oposicionista não foi monopolizada pela RCTV. Outros segmentos da sociedade contrários a Chávez participaram do golpe e perpetraram outras ações incompatíveis com as regras do convívio democrático - a desqualificação do adversário e a recusa em participar do jogo político institucionalizado. Desta forma, setores da oposição legitimaram atos de arbítrio do presidente. Um exemplo notável deste tipo de equívoco estratégico dos oposicionistas, que levou ao reforço do presidente e à legitimação de sua acumulação de poderes, foi a recusa de participar das eleições legislativas em dezembro de 2005. Com isto, os chavistas ganharam a totalidade das cadeiras no parlamento, permitindo ao presidente governar sem contrapesos e sem fiscalização legislativa. Esse parlamento unipartidário facilmente aprovou a "Lei Habilitante", no final de janeiro último, permitindo a Chávez governar por decreto por 18 meses, num amplíssimo campo de assuntos. Com anuência parlamentar unânime, as matérias, ao invés de serem debatidas publicamente, passaram a ser decididas solitariamente pelo presidente.
A lei habilitante fez com que pela segunda vez, desde o início da era chavista, a Venezuela passasse a operar segundo os princípios de um "absolutismo eletivo" - ou seja, um poder absoluto, apesar de legitimado por voto popular. Da primeira feita, a Assembléia Constituinte de maioria chavista subordinou a si os demais poderes. Agora, foi o Executivo que se tornou absoluto, por delegação parlamentar. Novo avanço nessa direção deve advir do provável fim dos limites à reeleição do presidente, defendido por Chávez e que seria implementado mediante nova reforma constitucional. Nos parlamentarismos normalmente não há limites para a recondução dos primeiros ministros em seus cargos, mas eles permanecem sob controle do legislativo, podendo ser removidos a qualquer momento por um voto de desconfiança. Já em regimes presidencialistas democráticos, não há um só caso em que sejam permitidas reeleições ilimitadas. Mesmo nos Estados Unidos, onde isto era possível, uma emenda constitucional acabou com tal possibilidade durante o período de Franklin Roosevelt.
Imaginemos o que poderia significar um presidente com capacidade de se reeleger ilimitadamente e dotado de leis habilitantes, para governar por decreto. A falta de debate decorrente da delegação legislativa, associada à dificuldade por parte das oposições de exercer qualquer controle institucional, limitaria sobremaneira os freios à ação do poder Executivo. Isto, associado à intimidação dos veículos de comunicação, cuja operação pode ser suspensa à discrição do Executivo, tornaria ainda menor a fiscalização sobre o governo. Logo, o controle do mandatário mor da nação sobre recursos governamentais constituir-se-ia num forte elemento de desequilíbrio da disputa eleitoral, inviabilizando a alternância dos partidos no poder. Desta forma, o absolutismo eletivo converter-se-ia gradativamente num autoritarismo, na medida em que as diversas formas de controle sobre o governo fossem paulatinamente eliminadas, sob o manto de legitimação de eleições cada vez menos competitivas.
Ainda um ponto merece destaque: o presidente superpoderoso que emerge deste arranjo não é uma liderança de perfil discreto ou moderado, mas um animador de massas que promove sistematicamente o culto à sua própria personalidade. Exemplo curioso deste culto à personalidade é a promoção simultânea da Copa América e do presidente Chávez em materiais de divulgação do torneio. Murais espalhados pelas cidades venezuelanas destacavam o retrato do presidente ao lado da simpática arara que serviu de mascote à Copa. É o mesmo presidente que utiliza horas de programas dominicais em rede estatal de TV para se comunicar diretamente com a população como um animador de auditório que tem o dom (ou seja, o poder) de resolver todos os problemas com uma canetada. Note-se bem: o culto à personalidade não é característica de nenhum regime que não seja autoritário. Curiosamente, essa programação é replicada também pela TV estatal cubana, à exaustão.
Tudo isto torna muito problemática a admissão da Venezuela ao Mercosul. Como se sabe, um dos principais elementos institucionais do Mercosul é a cláusula democrática, que obriga todos seus membros a preservarem a democracia. Ela já serviu no passado recente para evitar um golpe no Paraguai. Mas será que diante das evidências de recrudescimento autoritário na Venezuela ela seria facilmente invocada no futuro? Quem poderá alegar que já não sabia?
Chávez e as Farc
Coluna publicada no Valor Econômico em 16/01/2008
Após uma seqüência infeliz de fiascos políticos num curto espaço de tempo, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, logrou finalmente um êxito: o de libertar duas reféns há muitos anos mantidas presas pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Sua "intervenção humanitária" rendeu-lhe loas até dos mais insuspeitos atores políticos - como o governo dos Estados Unidos, alvo freqüente de seus ataques. O curioso é que esse êxito ocorreu apenas uma semana após o imenso fiasco representado pela "Operação Emmanuel" - nome dado por Chávez à ação de libertação das mesmas duas reféns e, mais, do próprio Emanuel, filho de uma delas com um dos seqüestradores.
A "Operação Emmanuel" foi um duplo malogro político para Chávez. Primeiramente porque o adiamento contínuo da libertação dos reféns pelas Farc pôde ser finalmente explicado pelo fato de que a guerrilha não dispunha do garoto, supostamente em poder de um "fiel depositário" a quem os seqüestradores o confiaram. As Farc demoraram a descobrir, todavia, que o menino na realidade já se encontrava sob a guarda do governo Colombiano. A posse dessa informação permitiu ao presidente Álvaro Uribe denunciar que a devolução dos três reféns simplesmente não ocorria porque as Farc não dispunham de todos eles, mas de apenas dois. Chávez reagiu violentamente à revelação, tentou desqualificar a informação de Uribe, mas acabou desmentido pela própria guerrilha, que admitiu não ter mais consigo o garoto, kafkianamente acusando o governo colombiano de tê-lo seqüestrado. Até mesmo o exame de DNA da criança Chávez contestou, exigindo a realização de uma "contraprova" em laboratórios venezuelanos. E esta é a segunda razão do malogro da "Operação Emmanuel": a admissão das Farc desarmou a reação chavista contra Uribe, impondo-lhe uma humilhante derrota ao desmoralizar sua empreitada como "agente humanitário bolivariano".
Este duplo fiasco na frente externa foi particularmente custoso para Chávez porque o presidente venezuelano tentava por meio da "Operação Emmanuel" recuperar-se no front externo da séria derrota interna que lhe infligiram pouco antes - a do plebiscito que lhe permitiria implantar constitucionalmente e com autorização popular um regime autoritário em seu país. O protoautocrata venezuelano tentou superar de forma ambivalente a derrota: por um lado, avançando tentativas de reconciliação com a oposição por meio de uma anistia aos golpistas que tentaram apear-lhe do poder; por outro, anunciando que não desistiu de implementar suas reformas de construção autoritária, de modo que voltaria à carga um pouco mais adiante.
Se o sucesso na libertação dos reféns lhe daria novas forças, o fiasco da operação lhe debilitou mais ainda. Pior ainda tendo sido ele engambelado pelas Farc. É a partir deste ponto que se pode compreender o que ocorreu na seqüência.
O fiasco da "Operação Emmanuel" acarretou perdas políticas tanto para Chávez como para as Farc. Para a guerrilha porque, além de macular ainda mais sua imagem, debilitou os canais de diálogo que possui com o presidente da Venezuela - uma das poucas forças políticas no campo internacional capazes de atuar como mediadora entre os guerrilheiros e o governo colombiano. Para Chávez a perda decorreu da desmoralização provocada por mais um fiasco em tão pouco tempo - ainda mais depois da atuação (mais uma vez) performática do presidente venezuelano, que apareceu em público com roupas militares, indicando num mapa como seria a atuação de seus comandados na "heróica" missão de resgate. Como diz o provérbio, quanto maior a altura, maior o tombo; o fracasso da campanha militar tornou a performance algo patético, uma ópera bufa.
Tornou-se, portanto, do interesse das duas partes - Farc e Chávez - retomarem a operação de resgate dos seqüestrados, nada sendo mais natural do que ela ter ocorrido. A parte visível da retribuição do presidente venezuelano à benevolência das Farc para consigo foi seu patético pedido de reconhecimento da guerrilha como "força beligerante" ou "insurgente", deixando-se de tachá-las como terroristas. Ironicamente, como que para desmentir seu defensor, nesse mesmo dia as Farc seqüestraram mais seis pessoas (turistas), elevando para 780 o número de civis em poder dos guerrilheiros - muitos deles crianças, retiradas de suas famílias para fins de extorsão ou para se tornarem soldados da "força insurgente". Resta saber se, além de atuar como seu porta-voz, Chávez fez outras ofertas às Farc como forma de retribuir-lhes por terem limpado sua barra.
Chávez, Morales e Correa
Coluna publicada no Valor Econômico em 01/12/2008
Os recentes episódios do entrevero diplomático-empresarial entre o governo do presidente do Equador, Rafael Correa, e o Brasil – primeiro envolvendo a construtora Norberto Odebrecht e, agora, o BNDES – são sintomáticos de uma faceta já manifestada anteriormente no âmbito dos proto-regimes políticos (ou regimes em construção) nas nações chefiadas por lideranças de perfil “bolivariano”. Ela se traduz na agressão aos interesses de empresas e governos de “nações amigas” feita com base na suposta defesa do bem nacional contra alegados violadores estrangeiros, reivindicando uma legitimidade que se basearia no caráter “soberano” do ato de violência. Assim como são normalmente legítimas ações amparadas pela lei de uma nação soberana, seriam também passíveis de legitimação atos que, alegadamente amparados nessa mesma soberania, violassem contratos anteriormente firmados por sujeitos estrangeiros que cometeram a imprudência de confiar na “lei soberana” previamente em vigor.
A contradição é patente: algumas normas e procedimentos que antes eram legais e serviram de guarida a quem – de boa fé – firmou contratos, tornaram-se ilegais na nova ordem instituída pelos líderes “bolivarianos”, de modo que a implantação da nova (e superior) legalidade requer o cancelamento de acordos e a suspensão de direitos, que se tornaram ilegítimos. Se, por um lado, alguém pudesse afirmar que a criação de uma nova ordem legal é algo normal em qualquer Estado de Direito, seria também bom lembrar que, sob o império da lei, esta não retroage em prejuízo de ninguém. E o que Rafael Correa faz agora, assim como Evo Morales já fez anteriormente, é alegar que antes se vivia num mundo de ilegalidade que apenas pôde ser corrigido após sua ascensão ao poder, cabendo a eles atacar seletivamente os focos da transgressão dos interesses pátrios em nome da soberania nacional.
A possibilidade da criação dessa nova legalidade que pode descurar de toda a normatividade jurídica anterior se baseia, por sua vez, no suposto de que o processo político em curso é de natureza revolucionária. E assim sendo, nada que antes pudesse ser considerado (no âmbito de um Estado de Direito) limitador da ação dos governos, vale numa situação excepcional como esta. Em todos estes casos os líderes “bolivarianos” buscam dar formato legal a suas ações, legitimando-as por meio de novos decretos, leis e, sobretudo, novas constituições.
A importância das novas cartas constitucionais, que foram pedra angular institucional da construção do regime nos três casos aqui aludidos, é a de simbolizar a refundação do Estado, zerando o cronômetro político da história do país e inaugurando uma nova era. A reformulação constitucional apenas dá um caráter mais radical – apesar de seu legalismo – às mudanças em curso; afinal, criar novas constituições significa criar novos Estados. Quem levou este processo com mais radicalismo à frente foi Hugo Chávez, que inclusive ocupou-se de rebatizar o país, alcunhando-lhe com o qualificativo de república “bolivariana”.
O bolivarianismo, seja lá o que efetivamente possa conter como ideologia, não é contudo uma característica institucional facilmente decifrável sobre a Venezuela refundada por Chávez, como seriam por exemplo, os qualificativos de república “democrática” ou “federativa”. O que de mais específico há no tal bolivarianismo são seu caráter supranacional (já que o sonho de Bolívar era o de unificar a América Hispânica) e sua natureza revolucionária. Com isto, uma “república bolivariana” seria, por conseqüência, uma exportadora de revolução para o continente, de modo que o qualificativo dado pela constituinte chavista ao país tem como fito, na verdade, um movimento mais amplo do que a mera reforma das instituições nacionais – visa-se reformar o entorno.
Uma das características dessa estratégia é uma atuação bastante agressiva (para não dizer truculenta) contra opositores internos e – evidentemente, dada a natureza do movimento – também externos. Na frente interna um exemplo disto foi a intimidação de Chávez a seus adversários nas recentíssimas eleições regionais, ameaçando até mesmo enviar tanques aos lugares em que a oposição se saísse vitoriosa. Afinal, quem não é um revolucionário (ou, pior, quem se opõe à revolução) é um traidor da pátria.
Já na frente externa o exemplo melhor são as ações “anti-imperialistas” de Caldera e Morales, de dar o calote da dívida com “usurários” estrangeiros, como o BNDES, ou desapropriar plantas industriais de multinacionais que se apropriam das riquezas nacionais, como a Petrobrás. No caso da expropriação boliviana, o governo brasileiro assumiu uma postura conciliatória, respeitando a “decisão soberana” (no sentido aqui já aludido) do governo de Evo Morales. Já no caso equatoriano, embora a mesma legitimidade soberana tenha sido invocada, a postura brasileira foi a de diplomaticamente sinalizar o teor inaceitável da ameaça de calote – pois, embora o Equador tenha apenas apelado a uma corte internacional neste primeiro momento, ele o fez logo após anunciar o caráter ilegítimo da dívida do país, segundo a avaliação de uma comissão de especialistas escolhidos a dedo pelo presidente Correa para produzir exatamente este diagnóstico.
Esta reflexão é importante para que possamos ter em conta o risco que correm tanto o governo brasileiro como as empresas nacionais que estabelecem negócios com os governos desses países. Embora potencialmente atraentes, os acordos firmados vivem sob a ameaça iminente de serem denunciados como ilegítimos, caso em algum momento no futuro as necessidades da revolução façam com que se perceba como necessária alguma mudança de regra.
Poder-se-ia afirmar que o risco é menor para acordos feitos com os presentes governos boliviarianos, pois ocorreriam no âmbito de uma legalidade criada por eles mesmos – e não mais num passado de trevas, cuja superação cumpriria à revolução proporcionar. Embora isto realmente pareça plausível, é bom observar que “a revolução está em curso” e enquanto o mundo não for completamente mudado, aos olhos de revolucionários, mesmo o que ocorre com a sua anuência é passível de contaminação pela perversidade circundante, sendo necessárias repurificações periódicas. É aí que mora o perigo.
Chávez e o Mercosul
Coluna publicada no Valor Econômico em 17/12/2008
A aprovação do ingresso da Venezuela no Mercosul pelo Senado brasileiro na última terça-feira encerra uma longa novela de enfrentamentos entre o presidente Venezuelano, Hugo Chávez, e a oposição parlamentar na câmara alta brasileira. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está livre para dar seguimento ao processo de adesão do vizinho latino-americano ao bloco regional. Todavia, esse processo ainda pode demorar a se concluir, pois o Senado paraguaio apenas retomará a discussão em 2010 e, por lá, as perspectivas não são, ao menos por ora, muito alentadoras. O grande receio que havia por aqui, e que há também no Paraguai, é que a incorporação da Venezuela é arriscada para a sobrevivência do bloco, pois a lenta, gradual e segura escalada autoritária chavista põe em xeque a manutenção da “cláusula democrática” do Mercosul, segundo a qual não se tolerará o rompimento com a democracia nos países membros.
Há uma nota irônica nesta relutância do Paraguai em dar sequência à incorporação da Venezuela. Ela reside no fato de que, em 1996, o nosso sócio em Itaipu foi ameaçado por um golpe de Estado, perpetrado pelo general Lino Oviedo, contrariado com sua demissão do posto de comandante do Exército. O então presidente Juan Carlos Wasmosy foi pressionado por políticos próximos a Oviedo a renunciar ao cargo, mas conseguiu resistir. Sua resistência se deveu, em parte, à mobilização popular de apoio à legalidade, mas o que contou realmente foi a forte pressão exercida, de um lado, pelos países vizinhos, membros do Mercosul – Brasil e Argentina – e, de outro, pelo governo norte-americano, que chegou a abrigar Wasmosy em sua embaixada durante o entrevero.
Àquela época ainda não vigorava a famosa “cláusula democrática” do Mercosul, ao menos do ponto de vista legal. Se alguma preocupação com a preservação do regime democrático nos países membros havia, ela existia apenas nas boas intenções dos governos de então e na sua disposição de exercer voluntariamente pressão política sobre os eventuais transgressores da democracia. Isto fica muito claro ao ler-se o “Tratado de Assunção”, que deu origem ao bloco e é completamente omisso a respeito dos regimes políticos que os países porventura viessem a adotar.
O tratado normatiza apenas questões de ordem econômica e comercial (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0350.htm). A “cláusula democrática” apenas ganhou institucionalidade legal em julho de 1998 com o “Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul, Bolívia e Chile”. Naquela ocasião, os Estados membros do bloco e seus dois parceiros acordaram que qualquer rompimento da democracia num dos países, se não fosse corrigida após tentativas de negociação, poderia acarretar sanções que iriam “desde a suspensão do direito de participar nos diferentes órgãos dos respectivos processos de integração até a suspensão dos direitos e obrigações resultantes destes processos” (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4210.htm).
O Protocolo de Ushuaia resultou da percepção de perigo suscitada pela malograda tentativa paraguaia de um golpe de Estado. Note-se que essa ação golpista contou inclusive com o apoio de membros da elite política eleita, como os senadores oviedistas – algo bastante comum nos golpes de Estado, como no Brasil em 1964, ou em Honduras, mais recentemente. Portanto, era preciso mostrar aos líderes políticos (inclusive os com mandato eletivo) dos países membros do bloco (e aos futuros pretendentes) que novas aventuras autoritárias não seriam aceitas, pois acarretariam a perda dos benefícios econômicos que a integração com os demais Estados proporciona.
É justamente em função dessa cautela que têm surgido as principais resistências ao ingresso da Venezuela no Mercosul. Se ao fim e ao cabo a paulatina e dúbia escalada autoritária de Hugo Chávez tiver como desfecho um regime autoritário, o Mercosul correrá um forte risco de desmoralização. A primeira razão para isto é que, em função do próprio caráter gradualista e ambivalente do recrudescimento autoritário venezuelano, ficará difícil aos líderes dos demais países membros identificar o momento da mudança autoritária, aplicando as sanções previstas em Ushuaia. Em decorrência disto, diferentemente do ocorrido com o Paraguai em 1996, a pressão dos demais países contra uma definitiva guinada autoritária terá que se dar com uma situação de facto já instalada – e amplamente anunciada com bastante antecedência. Isto aumentará bastante os custos políticos para sancionar Chávez, ameaçando tornar letra morta a cláusula democrática.
É fato que até mesmo opositores a Chávez na Venezuela clamam pela aceitação do país no Mercosul. Seu argumento vai ao encontro de posições defendidas pela chancelaria brasileira, segundo as quais para manter a Venezuela no campo da democracia é necessário não isolá-la, mas integrá-la. É claro que isto pode ser questionado com base no fato de que a integração entre os países não se dá apenas por meio de sua incorporação a blocos regionais, mas mediante outras formas de relacionamento – comercial, político, cultural etc.. Colocando de outra forma, não incorporar a Venezuela ao Mercosul nem de longe tem o mesmo significado de, por exemplo, manter o embargo a Cuba. Isto sim é isolar um país. A incorporação a um bloco requer que, para além um bom relacionamento, haja muitas afinidades – e é a falta delas que tem impedido, por exemplo, a aceitação da incorporação da Turquia à União Européia por muitos de seus membros.
A oposição a Chávez na Venezuela interessa-se pela entrada no Mercosul porque, de uma forma ou de outra, isto aumentará a pressão externa sobre ele para que limite sua escalada autoritária. E isto é, evidentemente, um ganho para os que se opõem ao presidente. O outro lado dessa equação, entretanto, indica que o preço de limitar Chávez será pago pelo próprio Mercosul “como bloco” – aliás, já bastante combalido.
A primeira parcela desse custo provém do risco da desmoralização de Ushuaia. A segunda parcela advém do impacto que a entrada da Venezuela poderá ter sobre o papel do Mercosul como representante dos interesses comerciais de seus membros nas negociações multilaterais. Ora, como os países do Mercosul têm frequentemente negociado como bloco em fóruns internacionais de comércio, a acomodação de Chávez – e de suas posições heterodoxas e conflituosas – deverá tornar ainda mais difícil a construção de posições unitárias e passíveis de estabelecer acordos viáveis com outros países. Noutras palavras, o preço que o Mercosul corre o risco de pagar para evitar o isolamento da Venezuela será o de isolar-se a si mesmo.
Chávez, Uribe e o Brasil
Coluna publicada no Valor Econômico em 23/07/2010
Os presidentes venezuelano e colombiano, Hugo Chávez e Álvaro Uribe, são personagens com diversas semelhanças. Ambos são lideranças de tipo carismático, que não ocultam seus pendores autoritários e procuraram modificar as instituições políticas de seus países de modo a se perpetuar na Presidência – ou, ao menos, nela permanecer longamente.
Mas é claro que também há diferenças importantes: Chávez é histriônico, Uribe é discreto; o venezuelano vem conseguindo aniquilar os freios e contrapesos da moribunda democracia venezuelana, garantindo para si mesmo reeleições ilimitadas com mandatos longos (de seis anos), enquanto seu colega colombiano, embora tenha tentado obter um terceiro mandato (de quatro anos), viu-se limitado por esses mesmos mecanismos de controle, os quais lhe impediram de reeleger-se uma segunda vez; Chávez é de esquerda, Uribe é de direita.
Sumarizando-se, pode-se dizer que Chávez é um postulante a ditador bem-sucedido até agora nesta empreitada, enquanto Uribe acabou por ter que se sujeitar aos limites do Estado de Direito e em breve deixará a Presidência, tendo elegido facilmente seu sucessor graças à sua grande popularidade. A estratégia chavista para construir de forma paulatina um regime autoritário e centrado no culto à sua personalidade é a de driblar as estruturas limitadoras do poder com base no plebiscitarismo. Realizando diversas consultas populares e contando com a incompetência da oposição, o presidente venezuelano logrou minar pouco a pouco os espaços de atuação de seus adversários.
Os momentos mais notáveis do processo de construção do poderio chavista foram: a dissolução dos poderes de Estado pela Assembléia Constituinte de esmagadora maioria governista, a qual lhes tomou o lugar; a negativa da oposição em disputar as eleições legislativas, permitindo ao chavismo dominar o novo parlamento, criado pela sua constituição “bolivariana”; a mudança do nome do país para República Bolivariana da Venezuela, conferindo à denominação do Estado o lema de seu movimento político particular; a vitória do presidente sobre um desastrado golpe de Estado que os setores mais conservadores tentaram desferir-lhe, em 2002, voltando por cima e como herói; o seguido fechamento (ou cerceamento) de emissoras de rádio e TV oposicionistas; a vitória num referendo revogatório sobre seu mandato, e a derrota num referendo que expandir-lhe-ia tremendamente os poderes; o drible nesta última derrota pela aprovação, no parlamento, da expansão dos poderes da Presidência e das reeleições ilimitadas; o enfrentamento com as classes médias e altas e, em particular, com a elite da companhia nacional petroleira, a PDVSA, vergando-lhe a espinha e desmantelando seu poder numa longa greve; finalmente, as seguidas turras com os Estados Unidos e, principalmente, com o vizinho mais alinhado aos EUA, a Colômbia.
Uribe tem como a marca distintiva de seu mandato um encarniçado enfrentamento com as guerrilhas de esquerda associadas ao narcotráfico, as FARC e o ELN, impondo-lhes seguidas e importantes derrotas. Do outro lado, o presidente colombiano conseguiu promover negociadamente o desarmamento dos grupos paramilitares de direita, com os quais possui preocupante proximidade. O resultado líquido desse processo foi um considerável avanço do processo de pacificação na Colômbia, tanto nas áreas antes controladas pelas guerrilhas como nos grandes centros urbanos. É daí que provém sua altíssima popularidade. Articuladamente a este processo, a Colômbia estreitou seus vínculos militares com os Estados Unidos, permitindo a instalação de bases militares americanas em seu território, ouriçando seus vizinhos, principalmente a Venezuela chavista.
Deflagrou-se ontem mais um episódio do drama político que tem sido a relação entre os dois países durante os governos dos mandatários aqui retratados. Mais uma vez a Colômbia acusou a Venezuela de dar guarida a guerrilheiros que buscam solapar sua soberania, apresentando imagens dos acampamentos supostamente em território venezuelano como prova disto, o que resultou na imediata (e muitas vezes anunciada) ruptura das relações diplomáticas com o país vizinho. Como se não fosse suficiente, fiel a seu histrionismo e ladeado pela figura igualmente melodramática de Diego Maradona, Hugo Chávez alertou que, se necessário for, verterá seu próprio sangue para defender a soberania nacional, chamou a seu colega colombiano de mafioso e destilou ódio num discurso mesclado por sentimentalismo e fúria. Os colombianos, por sua vez, mantiveram a acusação.
Se o enredo outras vezes seguido se repetir agora, em algum tempo as coisas voltam ao normal. A posse de um novo presidente na Colômbia pode facilitar o arrefecimento dos ânimos conclamado pela OEA, apesar das ameaças, antes feitas pelo presidente venezuelano, de que haveria uma guerra entre os dois países no caso da eleição do uribista Juan Manuel Santos. Como, entretanto, o chavismo é dado à ciclotimia, pode-se esperar que em algum momento assuma uma fala mansa, dentro do estilo bipolar.
Curiosamente, essa anunciada crise explode justamente quando, no Brasil, a principal candidatura de oposição acusa o PT – e, consequentemente, sua candidatura presidencial – de vínculo com as FARC, pivôs do episódio. O interessante é que o governo brasileiro de imediato se prontificou a interceder junto às partes, promovendo sua reconciliação, por meio do assessor para assuntos internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia.
É claro que, se as conseqüências de eventuais proximidades entre o PT e as FARC forem relevantes para a forma como o governo brasileiro atua, certamente a Colômbia rechaçará esta intermediação – tendo em vista sua parcialidade e suspeição. Tendo em vista, contudo, o histórico recente, não parece ser este o caso, indicando que uma campanha caracterizada por tais acusações corre o risco de descambar para um histrionismo similar ao protagonizado pelo chavismo, mas com sinal ideológico invertido.
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